Doença inflamatória intestinal: Abordando a Saúde feminina

Doença inflamatória intestinal: Abordando a Saúde feminina

A doença inflamatório intestinal (DII) engloba principalmente a doença de Crohn (DC) e a retocolite ulcerativa (RCU) ocorre principalmente em indivíduos jovens, em idade fértil, acarretando significativa incapacidade e morbidade.1

Os estágios de vida da mulher se baseiam em seu ciclo reprodutivo que se inicia com a menstruação e se continua até a menopausa. A DII impacta a saúde reprodutiva e a qualidade de vida das mulheres com o surgimento de inúmeros desafios a serem transpostos, e por vezes pouco abordados , como veremos a seguir.

Ciclos Menstruais

O ciclo menstrual normal tem uma duração de 28 ± 4 dias e invariavelmente está acompanhado de mudanças de humor e manifestações gastrointestinais ( 75%) nos períodos pré menstrual e menstrual , podendo estar relacionadas a flutuações dos níveis dos hormônios ovarianos.2

Estes hormônios ovarianos podem intervir no eixo cérebro – intestino, gerando mudanças na percepção dolorosa e hipersensibilidade visceral, e no limiar de dor (sistema opioidérgico e serotoninérgico) 3  Alteração da motilidade intestinal tem sido associadas a presença de receptores de hormônios ovarianos (estrogênio) na musculatura lisa intestinal 2 Níveis séricos reduzidos da progesterona podem acelerar o trânsito intestinal e os níveis séricos elevados tendem a inibi-lo, como demonstrado em estudos animais.3 Postula-se que a ativação de receptores de estrogênio nas membranas de células epiteliais esteja relacionada ao aumento na permeabilidade intestinal permitindo modificações na composição da microbiota intestinal, e consequente alteração do eixo cérebro – intestino, da imunidade humoral e celular. 4,5

De forma semelhante nos períodos menstrual e pré-menstrual de pacientes com DII também são observadas manifestações digestivas, predominando a dor abdominal e diarreia, e por vezes associadas a presença de depressão e fadiga. Estes sintomas podem estar presentes cerca de um ano antes do diagnóstico da doença de base. 6,7,8

Na recidiva da DII podem ocorrer ciclos anovulatórios e modificações na duração do fluxo e dor no período menstrual, mas que tendem a reduzir com a maior duração da doença. 9

O impacto no ciclo menstrual de medicamentos utilizados na DII  ainda não esta bem estabelecido, mas sugere-se que o uso de esteróides seja fator predisponente de alterações menstruais e que o uso de biológicos seja desencadeador de fadiga e de transtornos pré menstruais.8 O mesmo ocorre com cirurgias intestinais (ressecções, estenoplastia ou colectomia total) relacionadas a DII.10    

Considerando que as manifestações digestivas possam ser confundidas com a reativação da DII, na prática clinica é importante se analisar :

  • Presença dos sintomas prévios ao período pré-menstrual e sua permanência no período pós menstrual , o que favoreceria a hipótese de atividade de DII;
  • A presença de atividade da doença através de biomarcadores séricos e fecais ( calprotectina fecal)  que podem ser complementados com  exames radiológicos/ endoscópicos;
  • O emprego de medicamentos anti-inflamatórios não hormonais para o tratamento de dismenorréia, que poderia ser um facilitador de reativação da DII11. 

Contracepção

O uso de pílulas concepcionais orais contendo estrogênios pode se associar ao maior risco de cirurgia na DC assim como de fenômenos tromboembólicos (cerca de 2 a 3 vezes mais) na DII. Portanto este método contraceptivo deve ser evitado em pacientes com risco trombótico aumentado, durante atividade da doença ou durante o uso de inibidores da JAK.  O contraceptivo oral está contraindicado em pacientes com hepatopatia associada a DII. 12.13.14

Até o momento, não foi conclusivo se os anticoncepcionais orais aumentam o risco de recaída da DII11 Não existem evidências que os contraceptivos orais afetem a ação de biológicos e que os biológicos também afetem a eficácia do método contraceptivo. 12,13

Deve ser lembrado que contraceptivos orais podem ter sua eficácia reduzida em pacientes com DC de delgado extensa ou com enterectomias extensas prévias devido a possível absorção errática. 12

Na pratica clinica recomenda-se como método contraceptivo de 1a linha: DIU com levonorgestrel (endoceptivo) ou implantes contraceptivos, como 2a linha: contraceptivos injetáveis ou pílulas só de progesterona e como 3a linha : Estrogênios em baixa dose ( na ausência de fatores risco de trombose), patch transdérmico ou anel vaginal.12,13

FERTILIDADE

Considerando-se a presença de atividade, a taxa de fertilidade das pacientes com DII é similar a de mulheres sadias desde que a doença esteja em remissão. Entretanto, durante a atividade da doença a redução da fertilidade pode ser decorrente da redução da libido, do ciclo menstrual irregular, da presença de sintomas digestivos e extraintestinais (dor abdominal, de manifestações articulares) assim como pelo comprometimento perianal na DC e redução da atividade sexual do casal.14

O impacto de intervenções cirúrgicas relacionadas a DII na fertilidade feminina ainda não está bem estabelecido, como evidenciado em metanalise recente, no período de 1 ano  (RR 5.45, 95% CI 0.41 a 72.57; N: 114; 2 estudos) e 2 anos pós cirurgia ( RR 3.59, 95% CI 1.32 a 9.73; N:190 ; 1 estudo). Entretanto, a infertilidade foi maior em mulheres submetidas proctocolectomia restaurativa por via aberta se comparadas a cirurgias laparoscópicas quando considerado o período de 1 ano pós cirurgia (RR 0.70, 95% CI 0.38 a1.27; N: 37 ;1 estudo). O risco de infertilidade torna-se três vezes maior em mulheres com colite ulcerativa submetidas a proctocolectomia com bolsa íleoanal 17

Embora a maioria das medicações utilizadas no tratamento da DII não tenham impacto negativo sobre a fertilidade feminina, importante ressaltarmos a atuação do corticoide, da ciclosporina e do tofacitinibe. Foi demonstrado que a corticoterapia prolongada em doses superiores a 7,5mg/dia pode reduzir a reserva ovariana decorrente de sua atuação sobre o FSH e que a ciclosporina pode ter efeito gonadotóxico cumulativo dose dependente (> 10g/d) pode gerar falência ovariana prematura .18 O tofacitinibe em doses supraterapêuticas pode acarretar perda pós implantação, como demonstrado em estudos animais, portanto seu uso deve ser evitado até que evidências mais consistentes surjam. 15

AInfertilidade definida como a incapacidade de conceber após 12 meses  de vida sexual ativa e contínua de um casal , sem o uso de  qualquer método contraceptivo,está presenteem cerca de 3–14% das pacientes com DC e de 1.7–15% das mulheres com RCU, semelhante as taxas observadas na população em geral (2.5–14%) 19  Tem origem multifatorial envolvendo fatores psicológicos ( depressão, comprometimento da auto imagem, redução de libido), fatores relacionados a doença de base (DII ativa, ciclos menstruais irregulares, fistulas, ostomias, coiectomia total com bolsa ileoanal), escolhas pessoais e redução da reserva ovariana , sendo mais observada em mulheres com idade superior a 30 anos. 20

Na prática, ao se suspeitar de infertilidade feminina recomenda-se  afastar a possibilidade de haver infertilidade masculina, e promover a remissão da DII  utilizando-se de uma abordagem multidisciplinar (psicólogo, ginecologista, gastroenterologista e proctologista). Torna-se importante o referenciamento a um especialista em reprodução assistida visando a obtenção de orientações sobre criopreservação de óvulos ( mulheres até 35 anos ) e  fertilização in vitro .

DISFUNÇÃO SEXUAL

O olhar sobre a disfunção sexual (DS) nas mulheres com DII deve ser especial, pela alta prevalência da condição. As taxas de DS relacionada à DII na mulher variam na literatura entre 49-97%, superando amplamente a população geral, que se situa entre 19-28% 21.

Existem diferentes origens provavelmente ligadas à DS nas pacientes com DII, entre elas, o transtorno do desejo e excitação sexual, do orgasmo, de dor durante a relação, os próprios sintomas da atividade inflamatória, as típicas alterações hormonais de cada ciclo fisiológico, as questões psicológicas e emocionais, as complicações da doença perianal fistulizante, os fármacos que podem reduzir a libido, as grandes cirurgias que demandam ostomias, e tantas outras22.

Medicamentos usados na DII podem causar DS e a investigação na anamnese, é frequentemente esquecida. A interferência destes, nos mecanismos neurogênicos, hormonais e vasculares pode resultar na diminuição da libido, dificuldades orgásticas, inibição da lubrificação vaginal, irregularidades menstruais e aumento doloroso das mamas 23 .Os depressores do sistema nervoso central podem produzir hiperprolactinemia e os medicamentos antiandrogênicos podem afetar a resposta sexual normal. Agentes anti-hipertensivos e antipsicóticos podem induzir DS, o que pode resultar na não adesão do paciente ao tratamento e o esquecimento do relato durante uma consulta médica. De uma maneira geral, os efeitos colaterais induzidos por medicamentos são reversíveis com a identificação e descontinuação do agente indutor da sintomatologia. A DS é um importante efeito adverso subestimado de antidepressivos, amplamente utilizados, e as pacientes, se não forem questionadas diretamente, tendem a não os reportar.  A incidência relatada de DS associada à medicação antidepressiva, neste grupo, varia de 1,9% a 92% 23.

Os corticoides merecem atenção por seus efeitos cosméticos, como a obesidade troncular, acne, hirsutismo e estrias, são responsáveis por uma percepção de imagem corporal de grande influência negativa na vida da mulher com DII 24

O uso de imunossupressores e terapias biológicas foram descritos como relacionados a redução do desejo sexual em questionários específicos realizados, porém estes dados são conflitantes, duvidando -se a real explicação não estaria relacionada à gravidade da enfermidade e não do fármaco específico. Cabe aqui este alerta para a inclusão, na anamnese, sobre o uso de todas as medicações e tempo de uso, tentando a necessária correlação com DS, quando estiver presente24.

Há evidência, adicionalmente, de que os sintomas da DII, como a diarreia, a dor abdominal, a flatulência, a incontinência fecal, o tenesmo e a urgência evacuatória, além das manifestações extra intestinais (como a fadiga e as artralgias, por exemplo) estejam diretamente relacionados à qualidade de vida insatisfatória e DS24.

Embora as cirurgias possam ser responsáveis pela melhora na qualidade de vida das pacientes, estas também podem estar relacionadas a DS, principalmente no cenário das grandes cirurgias pélvicas, responsáveis por alterações na inervação dos genitais, distorção da anatomia da pelve, presença de sedenhos nas fístulas e quadros de dispareunia, redução da lubrificação vaginal e propriocepção.A proctocolectomia com reservatório ileal e sua proximidade com a vagina pode aumentar em 25 % as queixas de dispareunia e redução da satisfação sexual, além de medos e da depressão relacionada a abordagem cirúrgica. Outros desafios relacionados à cirurgia e ao reservatório ileal é a incontinência fecal, o aumento da frequência evacuatória e com isto há o prejuízo na satisfação e no desejo sexual. A proctocolectomia total com amputação abdominoperineal interesfinteriana tem demonstrado efeito desfavorável na função sexual que pode ser agravada pela presença da ileostomia devido aos medos relacionados aos escapes da bolsa, odores e distorção da imagem corporal25.

Há, na literatura, vários questionários com índices específicos de pontuação, que podem contribuir na determinação, classificação e gravidade da DS – alguns exemplos são o Female Sexual Function Index (FSFI) e o IBD-Specific Female Sexual Dysfunction Scale (IBD-FSDS).26.

Na prática clínica  sugere-se uma abordagem conjunta com a ginecologia e a introdução de algumas medidas, que devem ser introduzidas precocemente, como o uso de hidratantes tópicos, hormônios, lubrificantes, probióticos, antissépticos, fisioterapia do assoalho pélvico, anticoncepção (quando indicada) para suprimir efeitos de tensão pré-menstrual, com bons resultados25.

Os sintomas vulvares relacionados a DII, como fissuras, processos inflamatórios, fúngicos, úlceras, ressecamento e dor, devem ser corretamente questionados, identificados, diagnosticados e tratados, pois afetam diretamente os quadros de DS27. A DC da vulva foi bem descrita na literatura pediátrica e adolescente e, embora mais rara em mulheres adultas, é uma entidade clínica bem reconhecida. As pacientes podem apresentar sintomas redicivantes e remitentes de prurido, vermelhidão vulvar, inchaço ou dor, hipertrofia labial (particularmente nos grandes lábios), fissuras em forma de faca, ulcerações, abscessos e fístulas.  A DC vulvar pode ter relação direta ou não com a atividade da doença gastrointestinal, sendo neste ultimo caso, classificada como DC cutânea da vulva/vulvo-períneo ou DC metastática (DMC). A DMC envolvendo a vulva e o períneo é rara e, portanto, muitas vezes difícil de diagnosticar. Uma variedade de apresentações clínicas foi descrita, incluindo dor e inchaço inespecíficos generalizados, pápulas e placas eritematosas e úlceras que não cicatrizam. A DC vulvar pode preceder, coincidir ou desenvolver-se após o diagnóstico da doença intestinal.  No entanto, nem todos os casos de DC vulvar progridem para doença gastrointestinal. O profissional deve manter a suspeita de possível envolvimento de doença de Crohn vulvar em pacientes adultas com história de longa data de DII que remonta à infância e de dor vulvar, edema e ulcerações não explicadas de outra forma. Os diagnósticos diferenciais incluem líquen plano, líquen esclerose, neoplasia intraepitelial vulvar e linfangiectasia adquirida. Além das limitações físicas e do desconforto causado pelas doenças vulvares, perineais e glúteas, muitas mulheres com DII sofrem psicologicamente devido a essas lesões. Medo da dor, constrangimento, ansiedade ou depressão em relação ao aparecimento da lesão podem contribuir para a DS 25

A respeito das queixas vaginais propriamente ditas na DII, os dados disponíveis são limitados. Estudo retrospectivo avaliou a frequência de envolvimento vaginal e sua sintomatologia em mulheres com DC atendidas em um programa universitário de DII. Os prontuários de 50 mulheres com DC atendidas consecutivamente durante um período de três meses foram revisados ​​quanto à presença de envolvimento vaginal, a distribuição intestinal da DC e a presença de sintomas vaginais e tipos de queixas. Onze das 50 mulheres (22%) referiram sintomas vaginais. As queixas vaginais incluíram dez pacientes com inchaço labial, prurido e uma paciente com passagem de fezes pela vagina. Nove das 11 mulheres com queixas vaginais apresentaram sintomas intestinais e manifestações perineais concomitantes (p<0,001). Este estudo demonstra que o envolvimento vaginal na DC pode ser um fenômeno frequente e sugere que, seja parte importante da anamnese, o interrogatório de sintomas vaginais 28

Como se pode observar, a DS é comum entre mulheres com DII e pode resultar em problemas que envolvem intimidade, atividade sexual e satisfação, bem como a formação e preservação de relacionamentos pessoais. Os fatores de risco para disfunção sexual incluem intervenções cirúrgicas selecionadas, medicamentos, doenças mentais e comorbidades intestinais e extra intestinais relacionadas à DII. Além disso, certos fatores demográficos como a idade, o tipo de doença e a gravidade da DII influenciam o impacto da disfunção sexual.

Na prática clinica, a avaliação da DS pode incluir o uso de questionários validados sobre o funcionamento sexual, uma breve avaliação de saúde mental, investigação inicial sobre sintomas vulvovaginais ou perineais , exame físico de simples inspeção ou solicitação de avaliação ginecológica. Uma equipe de atendimento interdisciplinar envolvendo especialistas em DII, obstetras-ginecologistas, fisioterapeutas do assoalho pélvico e médicos de atenção primária pode ser a maneira mais adequada para fornecer cuidados ideais e recomendações de tratamento para pacientes com DS.

Em resumo, os cuidados na saúde da mulher com DII devem ser personalizados e abordar as necessidades específicas de cada fase da vida, desde a adolescência até a menopausa. O monitoramento regular da atividade da doença, ajustes no tratamento conforme necessário, nutrição adequada, exercícios físicos e apoio psicossocial são fundamentais assim como a participação ativa da mulher no seu próprio cuidado, buscando informações atualizadas sobre a doença, aderindo ao tratamento prescrito e mantendo uma comunicação aberta com sua equipe de saúde.

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