Entrevista – Frederico Camelo Leão
Centenas de estudos científicos já conseguiram demonstrar que a espiritualidade e a religiosidade afetam a saúde humana, principalmente de forma positiva. Tanto é verdade que a espiritualidade já é disciplina em muitos cursos de Medicina, embora a maioria dos médicos ainda relute em abordar o tema nas consultas.
Segundo o professor doutor Frederico Camelo Leão, pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP) e coordenador do Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (ProSER) da Instituição, espiritualidade e religiosidade não devem ser vistas como alternativa ao tratamento médico, mas como uma maneira complementar de cuidar dos pacientes.
O professor lembra que práticas como meditação, orações ou a dedicação a uma denominação religiosa podem estar associadas a melhoras na defesa imunológica e na longevidade.
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Como a espiritualidade pode influenciar a saúde humana?
É milenar o conhecimento de que a espiritualidade tem influência no ser humano. Segundo o filósofo Mircea Eliade, somos homo religiosus e não homo sapiens, o que nos qualifica como seres humanos. Quando perguntamos aos pacientes se eles têm alguma crença, a maior parte responde que sim e as estatísticas mostram que as pessoas são religiosas, espiritualizadas e fazem conexão entre o seu sofrimento e a sua cultura religiosa.
Nos Estados Unidos, Harold G. Koenig, um psiquiatra da Universidade de Duke, fez um levantamento de 100 anos de estudos mostrando evidências científicas de que a espiritualidade e a religiosidade afetam a saúde, principalmente de forma positiva. O resultado desse estudo resultou no livro Religion and Health, publicado inicialmente na década de 1980. Na edição mais recente, o pesquisador mostra que as pessoas ganham mais tempo de vida quando frequentam templos religiosos, leem textos religiosos, fazem orações ou meditam, e que essas práticas transformam vidas.
A partir desses resultados, pesquisadores do mundo inteiro começaram a ter interesse no tema. Desde então, estudos conseguiram mostrar, por exemplo, que pacientes com problemas cardíacos que recebiam uma prece intercessória frequentavam menos o médico, tomavam menos medicação, tinham menos crises e iam menos ao pronto-socorro, se comparado com o grupo que não recebia a prece, mostrando uma influência desse campo da existência humana na saúde dos indivíduos.
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Os médicos, independentemente das crenças pessoais, sabem lidar com essa dimensão espiritual dos seus pacientes?
Não. Muitos médicos não conversam sobre isso e alegam que não querem extrapolar o escopo do treinamento que receberam na formação. Entretanto, quando um médico conhece o perfil religioso e espiritual do paciente pode ajudá-lo, porque tem mais uma ferramenta para promover a saúde.
Fizemos uma pesquisa com psiquiatras do País usando o banco de dados da Associação Brasileira de Psiquiatria, e perguntamos se acreditavam e se conversavam com os pacientes sobre o tema. O estudo mostrou que a maior parte dos psiquiatras acredita, porém, a maioria não fala com seus pacientes sobre espiritualidade. E essa é uma barreira no acolhimento.
As crenças religiosas deveriam ser abordadas nas consultas, assim como se aborda alimentação, exercícios físicos, medicamentos e outros procedimentos que ajudam a amenizar o sofrimento. O estudo foi publicado no British Journal of Psychiatry, uma das principais revistas internacionais de Psiquiatria, cuja sede fica na Inglaterra.
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O senhor acredita que as práticas religiosas, de meditação e oração podem influenciar o sistema imune?
Esses são estudos interessantes, porque o tema está inserido no desenvolvimento da neurociência. A questão da espiritualidade é muito subjetiva, mas é importante buscar respostas em termos objetivos, por meio de metodologia científica, para conhecer esses padrões. Cientistas começaram a estudar, por exemplo, as neuroimagens e os marcadores.
Colocaram pessoas expostas a determinadas práticas comparadas com o grupo controle que não pratica religiosidade, e as imagens e os marcadores mostravam que o cérebro funcionava de forma diferente. O neurocientista norte-americano Andrew Newberg também comparou meditadores com indivíduos que fazem orações e com pessoas que cultivam pensamentos positivos, mesmo que não tenham uma crença religiosa, e verificou que há uma mudança em determinadas regiões cerebrais e de marcadores importantes.
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Valores positivos, como otimismo, bom humor, esperança e resiliência também ajudam a enfrentar o sofrimento?
Com certeza. Esse estudo do Newberg aponta exatamente isso: pessoas muito religiosas e que fazem as orações, e meditadores, independentemente de seguirem tradições religiosas, têm as mesmas regiões do cérebro ativadas de forma muito semelhante. A espiritualidade e o desenvolvimento de valores positivos ajudam as pessoas a desenvolverem uma capacidade simbólica.
E, quando têm essa capacidade de simbolizar, conseguem ter uma vida iluminada, uma vida que faz sentido. Quando a pessoa não tem esse repertório de simbolizar vai levar uma vida estranha, em que os acontecimentos não fazem sentido.
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A ciência já sabe o mecanismo que ocorre na mente quando alguém medita ou faz uma oração?
A ciência ainda busca conhecer os mecanismos, embora já saiba que essas práticas influenciam de forma bastante abrangente a vida e, logo, influenciam tanto a causa de doenças quanto a superação. Existe uma tendência de atribuir a mecanismos mais psicológicos, mais sociais, e há aqueles pensadores que buscam uma influência ontológica (ramo da filosofia que estuda a natureza do ser, da existência e da própria realidade), da espiritualidade influenciando diretamente não só pelo ganho secundário – que também é bem-vindo –, mas por algo que vai além.
A ciência já conhece as regiões do cérebro que sofrem essa influência, como a parietal e a frontal, que se desenvolvem melhor com essas práticas. A oração e a meditação também inibem outras áreas como, por exemplo, as amígdalas, região do cérebro que faz com que as pessoas tenham uma visão negativa da vida. Já está demonstrado que um meditador controla melhor as amígdalas e desenvolve melhor as regiões parietal e frontal.
A capacidade psíquica de foco e de concentração também muda com a meditação, porque a nossa mente é muito dispersa, uma mente tagarela, que fica igual um macaquinho pulando de um assunto para o outro. Um indivíduo que tem a mente muito dispersa tende a ser mais ansioso, e a ansiedade vai gerar mais receptividade ao estresse e uma série de doenças que decorrem disso. Quem consegue controlar essa ansiedade, consequentemente, tem um foco maior e consegue aquietar-se, fazendo um tratamento na origem desses problemas.
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Qual é o momento certo para um médico abordar a espiritualidade com o paciente?
O momento do primeiro contato. Temos uma tendência na formação médica, principalmente os especialistas, de ir direto ao ponto em que temos treinamento. Mas não podemos esquecer que tratamos seres humanos e que o adoecer e o estar em sofrimento é uma categoria de conjunto.
Se o indivíduo tem um problema gastrointestinal, por exemplo, e o médico fica olhando só para o sistema digestivo, dando medicações e fazendo procedimentos sem perceber que aquela pessoa tem sentimentos e valores, perde oportunidade de oferecer uma ajuda mais significativa, porque não está levando em consideração outras questões que são tão importantes quanto o problema que está abordando.
Depois que o médico faz o diagnóstico tem de perguntar se o paciente tem crença, se quer conversar para, então, fazer os encaminhamentos. O especialista não precisa ter a competência de resolver o problema, mas é importante alertar o paciente que essa dimensão também é importante na vida. Às vezes, o que o paciente mais precisa é de que o médico acolha suas crenças e seus valores.
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O senhor tem alguma sugestão de leitura para que as pessoas possam buscar o caminho da espiritualidade?
Não há uma sugestão específica, pois depende muito do interesse de cada pessoa. O importante é ler qualquer texto, mas tentar aprofundar-se, fazer com que aquele conteúdo estimule a capacidade de simbolizar.
A espiritualidade está lidando com algo sobre o que não temos recursos de acesso direto, o recurso que temos é simbólico, é de narrativas. Por exemplo, as histórias místicas são narrativas para nos lembrar de que existe algo maior, e tanto faz se o indivíduo lê a Bíblia, os Evangelhos, o Alcorão, a Torá… Em qualquer leitura é possível encontrar inspirações. Penso ser interessante ler um pouco os clássicos gregos – Sócrates, Platão – para inspirar-se nessa possibilidade de algo maior.
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Inspiração poderia ser o caminho para uma qualidade de vida melhor?
Acredito que sim. O que faz com que o indivíduo invista mais na sua qualidade de vida é ser capaz de ver o sentido da vida, ter objetivos maiores para a vida. Na medida em que tem esses objetivos, que consegue representá-los, olhar para aquilo e ver como um caminho possível – o que chamo de inspirar – é que vai ajudar-se nessa passagem de sofrimento.
As doenças crônicas são uma insistência de que algo não está bem e o indivíduo precisa se abrir para uma mudança, para uma transformação. Penso que a cura é isso: uma capacidade de transformação. Muitas vezes, como médicos, queremos transformar com procedimentos, com medicamentos, mas a pessoa precisa receber estímulos. Sabemos, por exemplo, que nos nutrimos pelo que absorvemos, não pelo alimento que comemos; e podemos comer qualquer coisa, tomar qualquer remédio e não absorvê-los, assim como podemos ter contato com algum conhecimento e não absorvê-lo… E aí não haverá transformação e vamos repetir os mesmos modelos.
Para que haja mudança é preciso absorver! É preciso desenvolver a sensibilidade do estímulo estético, do estímulo ético, das condutas, do estímulo do conhecimento, enfim, há muitos caminhos para isso.