O médico e pesquisador brasileiro Claudio Fiocchi é um estudioso das doenças inflamatórias intestinais (DII) e busca entender os mecanismos dessas enfermidades para a possibilidade de criar tratamentos novos e mais específicos. Nesta entrevista exclusiva, o pesquisador do Departamento de Patobiologia do Lerner Research Institute, Cleveland Clinic Foundation, nos Estados Unidos, explica a importância da microbiota intestinal, um ecossistema formado por aproximadamente 100 trilhões de bactérias, de mais de 1000 espécies. O cientista afirma que os pacientes com DII têm a microbiota alterada em associação com a inflamação intestinal, embora a ciência ainda não consiga esclarecer como ocorre essa relação.
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Qual a importância da microbiota para a DII?
A microbiota tem muita importância na DII, porque 80% dos micróbios do organismo ficam no trato gastrointestinal, principalmente no cólon. Portanto, é impossível dissociar a microbiota da DII, tanto no Crohn como na retocolite, apesar de ainda não entendermos exatamente como funciona esse relacionamento. Quando começamos a estudar a biologia das DII percebemos que tudo é muito complicado, pois existem muitos fatores que trabalham concomitantemente.
A microbiota é tremendamente diversificada e abundante, e não podemos simplesmente quantificar ou qualificar esse ecossistema sem também ver que genes são expressados pelos micróbios, que tipos de proteínas essas bactérias produzem, como é esse metabolismo e muitas outras questões. É verdadeiramente muito complicado.
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A microbiota fica alterada na DII?
Sim, essa é uma das razões para tanto interesse na DII. Os pesquisadores, os médicos e os pacientes falam que, se a microbiota intestinal está alterada e há uma inflamação intestinal, pode ser que a inflamação ocorra porque a microbiota não é normal. Este é um raciocínio lógico, mas muito simplista.
Porque, uma vez que existe a inflamação, de qualquer tipo, há uma mudança na microbiota. O grande problema é responder se a microbiota que está alterada causa a doença inflamatória intestinal ou se, uma vez que há a inflamação, a microbiota fica alterada.
Na verdade, as duas possibilidades são viáveis. Sabemos disso porque, em modelos animais, podemos induzir a inflamação e percebemos que a microbiota se altera. Então, é possível que essa microbiota não tenha um papel primário, mas, uma vez alterada, é muito provável que vai levar a problemas secundários. Portanto, se a microbiota não inicia a DII, pode servir para prorrogar a doença.
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É possível afirmar quais bactérias nativas da microbiota não estão presentes nos pacientes com DII?
Acho que não é uma questão de estar presente ou ausente, mas uma questão de quantidades relativas. Vou dar um exemplo: quando o bebê nasce, adquire a microbiota da mãe, principalmente através do parto vaginal e, depois, com o contato constante que se segue.
Há um estudo recente que mostra que a microbiota de várias partes do corpo do bebê é muito parecida com a de várias partes do corpo da mãe. Adquirimos essa microbiota ao nascer e vamos modificando este perfil com a dieta, com os contatos e todo o resto. No fim do primeiro ano de vida, a microbiota já é parecida, embora não completamente, com a de um adulto.
O interessante é que, logo depois do nascimento, nas primeiras semanas, nos primeiros meses, temos na microbiota intestinal, espontaneamente, um monte de bactérias benéficas – os probióticos – que vão desaparecendo aos poucos com o passar do tempo, embora não sumam completamente.
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Bifidobactérias e lactobacilos estão neste grupo?
Sempre teremos essas espécies na microbiota. E, quando tomamos probióticos, estamos suplementando essas espécies. Precisamos lembrar que os probióticos têm uma ação benéfica, mas ficam no intestino apenas enquanto continuamos a tomar.
Alguns pacientes melhoram com probióticos, mas têm de tomar sempre para continuar a se beneficiar. Isso ocorre porque a microbiota intestinal do adulto é como uma impressão digital: não consegue mudar. Estudos feitos em Boston mostram que a microbiota é tão pessoal que ninguém mais no mundo tem igual.
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Isso significa que aquela microbiota que o bebê adquiriu no começo da vida vai acompanhá-lo para sempre?
Como expliquei, a microbiota da criança muda no primeiro ano de vida, no máximo no segundo. E essa microbiota infantil tem alta porcentagem de probióticos. Os adultos ainda têm essas bactérias probióticas, mas a porcentagem é muito baixa, e essa é a nossa marca final, é a microbiota que levamos para o resto da vida. Uma vez que ficamos doentes, a microbiota muda – e não só na DII, mas em todas as doenças crônicas e inflamatórias, mesmo que não sejam tão severas, porque aí tem um componente inflamatório no mesmo tecido onde moram as bactérias.
É importante entender que, se a diarreia é causada por uma infecção, quando ocorre, toda a microbiota se altera. No entanto, ao curar-se, a pessoa vai voltar a ter exatamente a microbiota de antes. Mas, algumas pessoas que aparentemente se curam e, depois de um tempo, começam a ter sintomas intestinais de novo, podem ter desenvolvido cólon irritável ou DII, que fica para o resto da vida. Isso significa que há algum nível de estrago dessa microbiota que não se recupera, e provavelmente essas pessoas tenham outros componentes genéticos que permitem que isso aconteça. Em geral, o indivíduo sara e volta a ser o que era.
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A microbiota é fundamental para a imunidade?
Sim, principalmente no começo da vida, quando tudo se estabelece. Sabemos que modelos animais mantidos em ambientes estéreis praticamente não desenvolvem sistema imunológico, principalmente no intestino e, assim que a microbiota é reintroduzida, desenvolvem o sistema imunológico.
A ‘hipótese higiênica’ sugere que o ambiente moderno é muito estéril e não temos todos os encontros bacterianos no começo da vida, por isso, nossos sistemas imunológicos são deficientes e desenvolvemos doenças crônicas, como Crohn, colite, artrite reumatoide e outras. Hoje, se acredita que todas essas doenças crônicas inflamatórias ou autoimunes têm defeitos da microbiota.
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Os probióticos podem ajudar pacientes com DII?
Algumas vezes ajudam. Probióticos são usados no mundo inteiro. Não sabemos se há efeito e que tipo de efeito, mas, quando foram redescobertos, há uns 20 anos, e começaram a ser dados aos pacientes, houve muito interesse e muitos estudos. Do ponto de vista terapêutico, os probióticos não são a primeira linha para tratamento de DII agudas ativas, porque a microbiota sozinha não vai combater uma inflamação muito forte.
A ideia é que probióticos ajudem quando o paciente entra em remissão clínica. Estudos sobre isso não demonstraram um efeito consistente, mas sempre há pacientes que melhoram. Os únicos estudos que demonstraram de maneira mais convincente que os probióticos ajudam na DII foram relacionados à bolsite, a inflamação da bolsa criada quando se faz uma colectomia total. Nos estudos feitos na Inglaterra e na Itália, os pacientes que usaram probióticos não pioraram e tiveram pouca recaída.
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O senhor confia que será possível descobrir a cura da DII?
Cura, tecnicamente, significa que a causa da doença sumiu e nunca mais vai voltar. Do ponto de vista prático, para todas as doenças crônicas já estabelecidas, o melhor que podemos esperar para daqui a 10, 15 anos, é que o paciente entre em remissão permanente sem recaídas, mantendo a reação inflamatória controlada.
Neste futuro próximo precisamos ter mais ferramentas para lidar com a DII, tratamentos polifuncionais que controlem a inflamação, e temos de olhar para genética, sistema imunológico, ambiente, bactérias, vírus e tratar tudo. Não podemos tratar apenas um componente da doença inflamatória. Hoje, não fazemos isso por uma variedade de razões e não sabemos ainda exatamente quais alvos atacar, mas, no futuro, vamos fazer esse politratamento, e isso tem potencial de oferecer uma cura.
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Os biológicos são importantes para trilhar esse caminho?
São importantes, porque serão usados por muito tempo. Todas as doenças são compostas de mudanças ao nível molecular e, para corrigir essas mudanças, o que será feito serão tratamentos biológicos, não só com anticorpos, e sim com moléculas pequenas, com uma especificidade muito maior do que fazemos hoje e que reconhecem exatamente qual é o alvo molecular.
Com isso, a precisão de terapia vai ser aumentada, mas não será uma terapia única: cada doença irá precisar de várias terapias específicas ao mesmo tempo, dezenas ou dúzias. Somos muito complexos e as doenças também são muito complexas. Por isso, precisamos consertar muitas coisas ao mesmo tempo para obter uma cura. Mas estamos no caminho certo. Sem esperança não há vida.